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Casa das Sete Senhoras

A percepção amarga de que um país se vai estragando às suas próprias mãos motiva a relação de muitos fotógrafos com a paisagem transformada. Parece haver uma relação entre esse mal-estar e o apelo documental. A marcha do “desenvolvimento” tornou-se por isso uma questão na fotografia americana e, em menor grau, na europeia, ao longo dos últimos quarenta anos. Perante o feio, o irresponsável e o estúpido, essa marcha é apresentada com um olhar muitas vezes irónico, ou até vulgarizado pelo sarcasmo. Temperamentos diferentes aceitam o seu país como se aceita uma família, afeiçoando-se pelos seus erros e defeitos. Para outros ainda, a atitude justa é a de uma frieza eloquente. O público que decida por si mesmo a qualidade do destino que levam as coisas públicas, ponto final. Ironicamente, o público paga a frieza com frieza. No que toca a fotografia de «paisagem» (o que quer que isso queira dizer), prefere-se por regra aquilo a que Lewis Baltz chamou em tempos a estética de calendário.

Que a maioria de nós tenda a rejeitar a fotografia em estilo directo dos lugares que habita e, contudo, não rejeite (ou antes, feche os olhos a) que se desfeiem, não deixa de ser um paradoxo digno de nota. Pode ser que a transformação desses lugares sempre nos tenha parecido aceitável e bonita até os vermos representados numa fotografia. De passagem, todos já passámos pela experiência análoga de nos acharmos horrendos em retratos que, para os outros, são uma imagem fiel da nossa cara. Talvez seja um truque pérfido da fotografia, o de baralhar a relação das pessoas com os lugares e consigo mesmas.

Por contraste, o último livro do fotógrafo português Tito Mouraz, Casa das Sete Senhoras (Dewi Lewis, 2016), não baralha nada. Não é frio, nem irónico, nem sarcástico, nem pérfido — e muito menos de calendário. Não nasce da percepção de defeitos, mas de feitios, para não dizer virtudes. Distingue-se de Open Space Office (edição de autor, 2011) por ter com a paisagem uma relação não politizada. Do primeiro para o segundo livro a paisagem que se alterou parece ter sido, antes de mais, a paisagem interior do artista: o primeiro sugeria, nele, uma forma de sofrimento a respeito do território; este, paz: tréguas.

Realizado ao longo de cinco anos num raio de dois quilómetros, na Beira Alta, não é um trabalho «documental», no sentido comum do termo. Se documenta alguma coisa é a particularidade da relação do autor com uma geografia pessoal a respeito da qual persiste em todo o caso um género de espanto e estranhamento reservados a quem conhece uma coisa muito bem, ou pensou nela durante muito tempo.

Robert Adams lembrou uma vez uma frase de Diane Arbus sobre aceitar o que se fotografa quando se está diante de alguém: «Em vez de o ajustar», disse ela, «eu é que me ajusto». Servia esta ideia para descrever o trabalho de Judith Joy Ross, que tinha, na opinião de Adams, ainda uma outra qualidade: a julgar pela paz de algumas das suas imagens, Ross por vezes não precisava de ajustar nem as pessoas diante de si, nem a si mesma em relação a elas (Why People Photograph, Aperture: 1994, 103). O livro de Mouraz tem a meu ver esta qualidade. Não baralha nada, não ajusta nada, não precisa de se ajustar a nada. Salvo no que respeita ao uso de flash, que tem no conjunto uma função especial, deixa que as coisas sejam como são. Há estranheza de sobra na maneira como são.

A percepção de uma totalidade

Antes de encontrar a forma do livro, Casa das Sete Senhoras venceu em 2013 o Prémio Internacional de Fotografia Emergentes DST e a Leitura de Portefólios Carpe Diem Arte e Pesquisa. Dele derivou ainda um segundo livro, Lapa do Lopo, editado há três anos pela Fundação epónima, em que participaram ainda André Cepeda, José Pedro Cortes, José Bacelar, Paulo Catrica, Ângela Berlinde, assim como Tito Mouraz, com “Rua da Cabine” — um (belíssimo) ensaio pessoal sobre a rua onde passou a maior parte das férias escolares, entre o campo e a mercearia dos avós. A cerca de 5km, em Canas de Senhorim, sua terra natal, viria um dia a montar o seu laboratório fotográfico. (Ainda que se divida entre a Beira e o Porto, onde reside e trabalha, nada há de cidade e as serras neste livro, nem o menor sinal de qualquer divisão.) Mouraz adoptou o preto e branco, em parte, pelo controlo que tal lhe garante sobre todo o processo fotográfico. Talvez seja tanto uma questão de controlo e de autonomia como de organicidade. Todas estas imagens foram reveladas e impressas, e editadas, a uma curta distância dos lugares onde foram feitas, com o mesmo ritmo e a mesma paisagem sonora, completando um ciclo. São, como as pessoas retratadas, imagens «ligadas à terra como as árvores», para usar uma expressão do autor.

Embora o título Casa das Sete Senhoras refira uma lenda nativa (como já se imagina, uma história de bruxas e bruxedos: sete irmãs que saíam à noite para fazer coisas de bruxa), não existe entre título e imagens qualquer pretensão ilustrativa, nem sequer uma relação rígida. Ainda que, como explica Nuno Crespo no posfácio, “Não [haja] ambições etnográficas nem documentais”, podemos tomá-lo como um cumprimento terno a uma visão do mundo em vias de desaparecer. Lembra-nos de que, sem que nos apercebamos, também o folclore e a tradição oral são uma paisagem em transformação, aliás, brevemente irreconhecível. Partindo de um interesse por «saber como era antes de mim», Mouraz trata-os como quaisquer outros elementos legítimos do ecossistema, justapondo sequências oníricas, paisagem e retratos, acentuando uma contiguidade entre sonhos, ficções, explicações, pessoas, animais, plantas, barulhos, fogo, fumo, pedra, terreno, cinza — ou antes a percepção de que todos estes elementos formam (pelo menos, aqui) uma totalidade holística.

A ideia de ciclos

Equacionando mitologia e natureza num mesmo plano, o interesse do autor pela «lenta desactivação do maneio agrícola, a transformação progressiva do território, o envelhecimento» (i.e. o interesse indirectamente documental do livro), permanece, salvo no que toca à velhice, subentendido. Mesmo as imagens mais explícitas a esse respeito, por exemplo, as imagens de queimas, acabam por encadear na «feição mágica e medonha» de uma «experiência cíclica» (nas palavras do autor, «o meu maior ferimento»). Mais do que por uma narrativa, este livro é estruturado em torno de ciclos e transformações contra um pano de fundo alternante, ora a noite, ora o dia. Na verdade, a estrutura circular e a ideia de ciclos fundamentais (noite e dia, sono e vigília, vida e morte, fogo e cinza, a passagem das estações, etc.) domina todo o trabalho. Mais ou menos a meio, Mouraz faz questão de sublinhá-lo com um díptico composto por duas curvas antepostas, logo seguido por uma imagem de um círculo de pedras.

Com uma excepção aliás fabulosa, tudo o que vemos acontecer sob a luz do dia poderia ser descrito de uma forma ou de outra pelas ciências naturais e, portanto, pela sua velha aliada — a fotografia. Tal excepção diz respeito à transformação de uma velha raposa empalhada num sexagenário com as mãos sujas de terra apoiadas num tampo. Eis o género de bruxaria que só vemos suceder às escuras, quando, através de rimas visuais, normalmente isoladas com golpes direccionados luz descontínua, o fotógrafo (como se lançasse feitiços) reclama para si mesmo, por assim dizer, poderes de bruxa. Assim talvez se explique, para dar apenas alguns exemplos, que uma árvore se transforme numa escada de alumínio suspensa na vertical; ou que uma árvore morta se transforme numa cabra assustada; ou que cabelos negros encaneçam de um instante para o outro, e voltem a ficar negros logo de seguida. Resultando de um paciente trabalho de repèrage realizado de dia, ao longo de anos, estas imagens nocturnas excedem o plano da temporalidade; por outro lado, recriam uma aura de sonho que o “desenvolvimento” e a modernidade desencantada haviam tirado à paisagem. Ainda que não seja objectivo, o livro parece-me cheio de assombrações sonoras: um mocho, uma raposa, um ribeiro à distância, o assobio do vento. Convida a ter saudades do tempo em que tínhamos medo de atravessar uma casa às escuras; é uma fantasmagoria beirã.

Não poderia terminar sem destacar os retratos, pelos quais, segundo Mouraz, tudo começou. Ora lúdicos, ora meigos, ora duros, ora matreiros, mostram expressões da resiliência humana que apenas se vê (se houver paciência e pernas) fora dos códigos postais das grandes cidades. Talvez o primeiro deles — um homem de tronco nu o qual, no conjunto do livro, não se compreende se sopra fumo (de tabaco?) ou se aspira o fumo das imagens seguintes — seja, além de retrato, um símile e uma síntese. Do fogo à cinza, a alma do lugar confunde-se com a alma das pessoas; o sopro que os atravessa parece ser a forma de um mesmo fumo. O livro termina com uma senhora de rosto coberto por um xaile negro: de facto, em última análise, não se percebe se se trata de uma mulher, se de um homem, se é portuguesa, ou beirã, se é Albertina ou Maria Joaquina; uma criança diria que está mascarada de fantasma; um teólogo, que figura um sentido profundo da morte. Se compreendo o tom de Tito Mouraz neste livro, quer-me parecer que a conclusão é todavia menos grave e bastante mais simples: a de que perante a compreensão de que para tudo existe um ciclo, vale mais terminar com um sorriso.

in "Observador", 11/2016

Humberto Brito