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Casa das Sete Senhoras

“Creio que o olhar etnográfico é um vício. Porque a etnografia é uma ciência que vem depois. Do mesmo modo, pusemos de parte um olhar pitoresco ou religioso sobre o Nordeste. Evidentemente, interessámo-nos muito pelos problemas antropológicos postos pela região à literatura celta, etc. [...] Mas sempre com o objectivo de escolher, intensificar. Porque se lemos uma paisagem apenas do ponto de vista da «beleza», é redutor. Mas se pudermos ler ao mesmo tempo a beleza da paisagem, o aspecto económico da paisagem, o aspecto da geografia política da paisagem, tudo isso é a realidade da paisagem. Paisagem integrada, sem transformação, paisagem cultivada, etc.”1

Paisagem é um nome complexo. Umas vezes confunde-se com a natureza ou com a geografia; outras com o modo como se ocupa um território, as casas que se constroem, as pontes que se erguem, os lagos que se fazem. Também é usada como metáfora para identificar os diferentes elementos que tecem uma pessoa e aí fala- se na paisagem interior e depois há muitos outros usos que a metaforização da paisagem potencia e autoriza. Em todos os casos, trata-se sempre de uma heterogeneidade e totalidade dificilmente abarcável num só olhar, numa só palavra, numa só imagem.

Estas obras de Tito Mouraz, inserem-se na longa tradição da relação das imagens com a paisagem, mas para este fotógrafo a paisagem não designa uma coisa que se descreve, representa ou testemunha, mas é o lugar onde habita uma tensão e onde os elementos visíveis parecem invocar não só as presenças materiais, mas também as ausências, espíritos, a magia. O seu olhar não se desenvolve através da atenção aos objetos da paisagem, nem às suas configurações mais ou menos pitorescas, nem lhe interessa o exotismo que os lugares distantes parecem prometer.

1 António Reis sobre a sua obra “Trás-os-Montes” (1976) em entrevista publicada na revista Cahiers du Cinéma, n.o 276, págs. 37-41, Maio de 1977, tradução de Isabel Câmara Pestana e Miguel Wandschneider

É importante contextualizar o modo como estas obras olham para uma pequena parte da Beira-Alta (território de origem destas imagens) e para o modo como as imagens constituem uma espécie de biografia desse lugar. Uma biografia com todos os seus enigmas e contradições. Não se trata de uma descrição material dos haveres daquele lugar, mas o seu mecanismo é evocativo e convoca todas as forças como elementos determinantes na construção da vida e dos diferentes tempos inscritos nos rostos, nas casas, nas florestas, nas ruínas. Não há ambições etnográficas, nem documentais , nascem da presença num lugar: estar simplesmente lá no lugar para onde se quer olhar e deixar-se fazer parte da paisagem que se quer mostrar aos outros. Uma presença não passiva, porque ela impõe-se como relação dialéctica com o lugar: à presença e proximidade sucede-se o afastamento e a distância, condições de possibilidade do fazer das imagens.

Essencial a este modo de ver, é que cada imagem resulta de uma experimentação com a geografia, as casas, as pessoas, e, claro, de um confronto com todos os mistérios e magias que densificam e intensificam um lugar. E é nesta intensificação de um território que Tito Mouraz encontra uma espécie de metodologia que mais não é que uma forma de pensar sobre um lugar que tão bem conhece (este é o lugar da sua infância). Por isso, estas obras não expressam estranheza, mas são a face visível da intimidade e presença do fotógrafo nesse sítio que quis transformar em imagem.

Mas as imagens não valem individualmente e só nas diferentes relações entre cada elemento desta série, que estas fotografias vão buscar a sua energia. Quando se move a concentração para o todo das imagens, percebe-se que elas são uma espécie de portal de acesso a um tempo, não cronológico e totalmente indeterminado, em que o mundo não era explicado, mas contado através de histórias e os maiores segredos estavam à vista de todos.

Nuno Crespo