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Farleigh

Farleigh — Até onde a fotografia perscruta a ficção

O mundo é uma ficção. Uma imensa ficção e será a fotografia a restituir-lhe a verosimilhança.

Farleigh situa-se numa latitude e longitude indetermináveis. Sabe-se que fica algures do outro lado do território que se conhece ou se julga conhecer. Para chegar a Farleigh, provavelmente, ter-se-á de atravessar o mar, subir dunas e encostas rochosas, adentrar por grutas, seguir por campos infinitos até ao sopé da montanha adormecida revestida de negro. Pelo caminho, encontrar-se-ão resquícios de sais minerais, vegetação frondosa de cores exuberantes e vivas, árvores serpenteantes e vestígios de civilizações antigas.

O tempo é um só em Farleigh, apesar da garantia do ciclo entre a noite e o dia, como no círculo de um bando de pássaros, sobrevoando o mar, bem alto, contando a lengalenga que, neste mundo, tudo nasce, tudo morre. Mas, em Farleigh, perdido no espaço e no tempo, teremos de nos agarrar às poucas coordenadas que nos tornam humanos. O tempo mostra-se como um único presente contínuo. Os corpos (dos seus habitantes?) ensaiam a queda eterna ou a espera infinita, procurando refúgio, sem chegarem a conhecer a Casa. A casa fecha-se, isola-se. Os objectos existem suspensos no espaço, como alguns corpos feridos. O fogo consome a noite. E, na noite, sob o clarão excessivo abstracto, casas, barcos, objectos flutuam num espaço sem dimensões. É o nome que lhes é roubado, atirando-os para a indefinição perpétua (será necessário evocar os arquétipos que guiam os nossos passos entre a vida e a morte). Tal como no tempo da erosão: rochas de formas insólitas ou um rosto esculpido no único tempo que se sente como longínquo e passado? Paisagens, corpos e objectos reconduzem-nos, sempre, ao mesmo ponto de partida: onde fica Farleigh?

Nos confins da angústia que caracteriza o nosso estar-no-mundo (no tempo presente).

O fotógrafo utiliza a sua câmara como uma sonda, perscrutando os limites de Farleigh. Noutras situações, estes apresentavam-se-lhe, perfeitamente, definidos e circunscritos a um fragmento do mundo, no interior do qual mapeava as suas singularidades, as variações, os motivos — ou, no conjunto total, as “formas” — que surgiam perante a luz, as suas flutuações e a sua irradiação pelos corpos e pelos objectos. Fotografar para conhecer a (aparente) realidade de um fragmento do mundo, gravando na superfície sensível da película uma imagem do que via ou das formas que, nessa imagem, descobria. Mas o mundo — já nesse fragmento se pressentia — mostra-se sempre à objectiva como uma ficção. Em mil disparos, mil ficções. E, em cada fotografia, um fragmento dessa ficção maior. “O gesto de fotografar é um gesto da visão, aquilo a que os pensadores antigos chamavam de theoria, e que desse gesto resulta uma imagem, a qual seria por esses mesmos pensadores chamada de idea. Ao contrário da maioria dos outros gestos, o gesto de fotografar não tem a intenção directa de transformar o mundo ou comunicar com os outros, antes visa observar alguma coisa e fixar a visão, torná-la ‘formal’. […] A fotografia é o resultado de um olhar sobre o mundo e, ao mesmo tempo, uma transformação do mundo; é uma coisa nova”.[1]

O fotógrafo vê o mundo já transformado, porque observar uma situação “implica precisamente ser por ela transformado. A observação transforma o observador. […] O fotógrafo não pode senão manipular a situação, a sua simples presença é uma manipulação. E não pode evitar modificar-se através da situação. O simples facto de nela se encontrar transformado. A objectividade de uma imagem (de uma ideia) não pode ser senão o resultado da manipulação (a observação) de uma qualquer situação. Na medida em que manipula aquilo que é por ela captado, qualquer ideia é falsa, e neste sentido é ‘arte’, ou seja, ficção. Contudo, num outro sentido existem ideias verdadeiras, aquelas que captam realmente o que por elas é observado. Talvez fosse isto que Nietzsche quisesse dizer quando afirmava ser a arte melhor do que a verdade”.[2]

O fotógrafo sabe que cria ficções, utilizando e manipulando a fotografia para compreender as ideias verdadeiras do mundo, sabendo que é a própria condição de verosimilhança que impede a morte da fotografia ou a capacidade desta se problematizar enquanto transformação do mundo. As ideias verdadeiras encontra-as o fotógrafo na raiz ou na origem do que poderemos designar de inexplicável ou misterioso, e que o fotógrafo tem vindo a perseguir ao longo de todo o seu trabalho (a perplexidade e a estranheza são características comuns a várias séries suas). Mas, em Farleigh, o assombro reveste-se de uma outra dimensão. À intimidade de outrora, há uma solidão que sobrevoa e recobre tudo em Farleigh.

Antes, a deambulação e a procura do lugar e da posição de observação e manipulação eram conduzidas por uma distância crítica que o fotógrafo conseguia determinar com alguma segurança, circunscrevendo as possibilidades, mesmo jogando com o acaso, que, deliberadamente, deixa que intervenha (continuando a privilegiar os processos analógicos, o acaso define-se como o resto imperscrutável resultante dos complexos processos mecânicos, electromagnéticos e químicos, que ocorrem nas várias operações, desde o que é que acontece no interior da câmara à revelação, à impressão e reacção a diferentes suportes de fixação da imagem — note-se, em Farleigh, a utilização de papéis fotográficos muito distintos, alguns dos quais com mais de cinquenta anos —, ou ainda, à correcção e retoque manuais). Contudo, em Farleigh, ao procurar a sua posição, o fotógrafo parece estar sempre a ser surpreendido por outra coisa, imprimindo às fotografias uma perplexidade maior ainda, em que a “forma” parece escapar-se-lhe, deixando senão um vestígio, um rasto da possibilidade da sua existência, como um sussurro de um segredo sobre qualquer coisa impalpável — talvez um acontecimento abrupto que despoletou uma série de fenómenos imprevisíveis[3] — que não tem lugar na fotografia. Este mal-estar acentua-se quando, curiosamente, o formato de impressão diminui e somos impelidos a colar o nosso olhar à imagem e a abrir bem os olhos numa vã tentativa em desvendar o seu segredo num intimidade frustrada. Tudo parece indicar que é a “forma” daquilo que não se pode apreender que o fotógrafo, afinal, persegue, capturando o informe, o que não tem forma, apesar de todas as formas que vão surgindo (a evidência destas é uma condição de sobrevivência).

Contudo, as formas, que surgem, não estão imunes à queda, à ferida, à fragilidade, ao desequilíbrio, à instabilidade, à indefinição e à ausência de coordenadas espácio-temporais. Pelo contrário, o barco segura-se em pé com barrotes de madeira rudimentares e provisórios, denunciando uma queda iminente. O pé suspenso em esforço ilude a ferida com uma ligadura. O fogo, que tudo consome e reduz a cinzas, hipnotiza com o seu reflexo imaterial. Outras formas, não obstante se reconhecerem como tais, permanecem num estado de indefinição latente: uma pedra ou um ovo? Um olho ou um halo? Nos gestos dos corpos, descobrem-se traços de animais, perseverando-se nestes a possibilidade última de existência num território que parece ser o do fim.

Para evitar o colapso e a ruptura total das nossas estruturas cognoscíveis e sencientes, o fotógrafo cria “sub-circuitos” estabelecendo relações, afinidades e analogias, que, por sua vez, possibilitam, ao invés de uma redenção, uma escolha a ter lugar na imaginação. Será sempre através desta que as fotografias que contemplamos podem, por fim, transformar-nos a nós próprios neste lugar a que chamamos mundo e sair de Farleigh, não imunes, mas cientes desse abismo que a transformação do mundo — num duplo sentido, relembrando as palavras de Vilém Flusser — cria na condição humana. Ao longo da nossa existência, regressaremos várias vezes a Farleigh: esse estranho lugar que só existe em nós.

 

Susana Ventura
Março 2023

 

[1] Vilém Flusser, “Die Geste des Fotografierens”, in Vilém Flusser, Gesten, Versuch einer Phänomenologie (Bensheim / Düsserldorf: Bollman Verlag, 1993 [1991]), 107. Segue-se, no presente texto, a tradução do ensaio de Vilém Flusser por Nélio Conceição, disponível em http://hdl.handle.net/10362/10380.

[2] Idem, Ibidem, 115.

[3] Atendendo ao intervalo temporal em que esta série foi realizada, conseguimos questionar sobre alguns dos possíveis fenómenos ao nível societal, permanecendo, contudo, inacessíveis e ocultas possíveis transformações que ocorreram no plano individual do fotógrafo.

Susana Ventura