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Selva Oscura
Este não é o tipo de imagens normalmente associado à fotografia enquanto prática diarística, imagens de pessoas, acontecimentos e lugares. Mas, bem vistas as coisas, estas são imagens de pessoas, acontecimentos e lugares. Lugares cuja geografia interessa menos do que a condição de um encontro do fotógrafo consigo mesmo, lugares que coincidem com a imagem enquanto plano. Acontecimentos puramente visuais, que são as ocasiões desse encontro. Imagens de uma subjectividade a travar a batalha da vida adulta e que comportam em si (fora de plano? Não: na própria forma) a espessura humana da torção mimética das coisas.
A ‘A Floresta Democrática’ de William Eggleston encontra nesta série de Tito Mouraz um desenvolvimento sombrio, tomado de empréstimo a Dante Alighieri: a selva oscura. “No meio do caminho em nossa vida / eu me encontrei por uma selva escura, / pois que a direita via era perdida”.
São excertos de um diário do olhar inquieto que procura um caminho através da selva escura do presente: da esfera exterior assim como da vida interior, a selva escura da realidade e da vida real. Excertos que apontam na direcção de uma analogia entre a situação geral do artista que avança sempre meio às escuras, encontrando-se por tentativa e erro, e o desamparo do adulto confrontado com a tortuosidade da própria via. São, literalmente, anotações da vida quotidiana de um fotógrafo momentaneamente desviado pelas vicissitudes da fotografia de longo prazo, a vida quotidiana do olhar a descrever-se, ou a procurar-se no mundo, de modo incansável.
Vemos aqui, assim, um questionamento da própria prática artística (em retrospectiva metaforizada) ou uma reflexão sobre a forma do próprio caminho ou, se se preferir, sobre o caminho da forma.
Tito Mouraz ironiza a respeito da instabilidade da via direita, ou sobre a sua natureza acidentada e meta-estável, ironiza a respeito daquilo que estamos dispostos ainda a considerar a via direita apesar de todos os atropelos, torções e compromissos. Apontando para uma série de quebras, falsas partidas, becos sem saída, aporias, reflecte sobre a aceitação dos danos da contingência, sobre a pureza da forma idealizada, que já se abandonou em simples virtude de a idealizarmos.
E então, diante da torção do caminho, podemos questionar-nos que caminho escolhe o olhar e aquele que olha: escolherá a via torta ou a via recta? Seguirá no escuro, desamparado, sobre o desenho da curva, à procura da luz, em vista da vida misteriosa que se vai abrindo à sua frente?
Tito Mouraz reflecte aqui em torno da vida enquanto extravio e enquanto surpresa, e da fotografia enquanto fiada mental que o guia (nos guia) através de um labirinto cuja forma é o extravio e a obscuridade e a perda da forma.
Estas são imagens que se despedem da juventude, que lidam com a esperança. A esperança na compreensão de si na floresta da existência. A esperança implícita e tantas vezes mal-entendida em transportar consigo a câmara por onde quer que vá, em estar, quando e onde quer que seja, a postos para o belo, para o anómalo, para o interessante. Um documento da esperança do fotógrafo relativamente à prática fotográfica enquanto bússola para a selva oscura, para os descampados da alma.
Djaimilia Pereira de Almeida e Humberto Brito
outubro de 2025