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10/08/2019

Rio Manso

No final da vida, no tempo de todos os acertos de contas, o pintor Paul Cézanne realizou uma longa série de telas, algumas delas das mais influentes e glosadas da pintura moderna. As (e os) “Banhistas” mostravam corpos andróginos saltitando e rindo entre pedras e riachos, nadando em rios, num ambiente irreal e onírico de jubilosa felicidade que era uma rememoração da sua própria adolescência em Aix-en-Provence onde, na companhia de Émile Zola, conheceu os anos mais felizes da sua vida.

O que o pintor representava e Matisse, Picasso e Derain tentaram recriar era essa febril combinação entre a infância e o verão que todos os que foram adolescentes ao ar livre reconhecem, mesmo se nunca viram uma pintura de Cézanne.

O fotógrafo português Tito Mouraz (n. 1977) começou o projeto “Fluvial” há cerca de oito anos e foi essa febre mansa que encontrou em várias praias de rio da região da Beira Alta, uma utopia inorgânica que se realiza sobre uma paisagem irregular e misteriosa que abriga um tempo que em vez de correr se limita a escorrer sobre ela.

É impossível ver estas fotografias aberta e surpreendentemente felizes sem pensarmos quanto a imagem do ‘interior’ mudou para o país nesses oito anos. E todos sabemos que mudou à força. À força de serras queimadas, de povoações destruídas, de cadáveres perdidos em estradas assassinas que obrigaram o país a perceber da forma mais dura os custos de vivermos todos inclinados sobre o mar.

Mas as imagens de Mouraz ajudam a desfazer a abstração esquemática e distante do “mundo rural” de um outro modo. Devolvendo-o a uma memória, a dele, a do lugar e a nossa.

O seu ‘interior’ não é nem o lugar televisivo da devastação nem o postal que promete ecoturismo à chegada.

Tito já havia mostrado uma parte destas imagens na galeria Módulo; na última edição da Bienal de Fotografia de Vila Franca de Xira mas também no estrangeiro, em Helsínquia. Agora o ciclo fecha-se com a edição de um photobook, na mesma editora que já havia dado ao prelo o seu “Casa das Sete Senhoras” que laborava em torno de uma história mítica da Beira Alta feita de bruxas e narrativas orais e que foi considerado internacionalmente um dos melhores livros de fotografia de 2016.

Os dois volumes são muito diferentes, o primeiro era composto por imagens a preto e branco e remetia para uma circunstância e narrativa muito particular; este é vividamente colorido e capta sobretudo uma atmosfera. Atravessa-os, porém, uma mesma intimidade com o lugar e a aceitação da fotografia como uma prática eminentemente subjetiva. Mouraz contorna quer o documentalismo quer a tentação sentimental, fazendo da sequência das imagens uma potencial ficção fragmentária onde, em cada fotografia, se nos oferece um lugar (que nunca sabemos, especificamente, qual é), um assomo de enredo e, fator fundamental, uma particular experiência do tempo.

O que distingue estas imagens é, porém, a natureza do olhar, uma aproximação distendida, quase meditativa que surpreende pormenores paisagísticos e humanos e, sobretudo, que é capaz de os mostrar numa tépida harmonia e reconciliação.

Algumas imagens possuem um elevado nível de abstração como as que abrem o livro e não revelam que água vemos (rio?, lago?, mar?) como se o elemento fosse mais importante do que o contexto. Veja-se aquela que mostra um muito fino ramo de árvore à tona da água como uma assinatura de Deus; ou a que deixa ver um topo de escada num cais que nos aparece como um par de fósforos. Outras são explícitas nas referências que convocam, como no caso da fotografia com nenúfares que remete imediatamente para a famosa série de Monet.

Num ambiente dominado pela água, o reflexo é naturalmente um elemento preponderante. Por um lado, porque produz uma metáfora de espelhamento e osmose entre o elemento humano e a ‘natureza’. Depois, porque muito contribui para a atmosfera hipnótica que muitas imagens exibem, sugerindo temperaturas, contrastes lumínicos e, no jogo entre penumbra e luz que atravessa toda a série, isolando presenças que se recortam de modo quase escultórico. É o caso do pato que parece flutuar sobre a própria noite; dos dois rapazes cujas cabeças parecem siamesas ou do homem que nada como se se fosse fundir com as pedras que o recebem.

Por vezes, o humor assoma, como na foto em que um casal namorisca sobre a toalha de um modo tão entrelaçado que mais parece um número de luta greco-romana. Mas nunca há uma perspetiva superior ao que se vê. O desamparo e a inocência das pessoas no seu langor estival não se transforma em alimento para considerações sociológicas.

Dir-se-ia que Mouraz procura o momento do contacto, aquele em que a energia particular do lugar se encontra com as pessoas e é isso que fornece uma serena espiritualidade ao conjunto. Pode sentir-se isso, de um modo quase pagão na imagem de fertilidade de uma rapariga grávida sobre uma rocha, ou na posição infantil de um velho acocorado na água.

Porque tudo nestas imagens nos aponta para a ideia de suspensão: da consciência de si, do corpo, da proveniência social, do peso da vida ou dos códigos culturais, sem que isso nos remeta para qualquer forma de alienação.

Os cínicos dirão que a natureza e a paisagem são construções culturais e que as imagens que delas produzimos são só um espelho disso, mas essa constatação clarividente não pode grande coisa quando sobre elas nos debruçamos. Como já acontecia de modo muito diferente na série “Open Space Office” (2013), que fixava imagens de pedreiras, as fotografias de “Fluvial” forçam-nos a esse confronto, a enfrentar o desencaixe entre mundo ‘natural’ e ‘cultura’ que tragicamente habitamos, fazendo-nos espreitar o que algures perdemos (outra temporalidade, um despojamento material). Nesse sentido, estas imagens são um regresso e uma redescoberta. Atingindo-nos sensorialmente, elas acusam uma perda iminente, mas sinalizando a sobrevivência deste mundo minoritário são também um veículo de esperança.

Martins, Celso, in “A Revista do Expresso”, ed. 2441, 08/2019