< TextosOlhar-Escultor

Olhar-Escultor

Open Space Office

Na entrada “Ruína/Restauro” da Enciclopédia Einaudi, Carlo Carena (citando outros) diz-nos que a paisagem é a natureza vista através da cultura. Depois do romantismo, que é imanentista (a verdade é intrínseca à arte, só a arte gera verdades) e anti-iluminista, certamente que nunca mais uma paisagem se libertou desta “natureza cultural”, em que estes dois pólos (natureza e cultura) configuram um pensamento próprio e uma forma de conhecimento. A natureza torna-se indissociável da presença humana, arquétipa e remota (digamos deste modo), tendo nela dissolvida e irmanada a marca humana (na terra) sob a forma de carcaças de edifícios e ruínas (que são vivas como os arbustos e as florestas, em suma).

Esta paisagem cultural romântica é realizada, em termos físicos, ideais ou ideológicos, para a contemplação. No belo assim harmonicamente expresso não há “feridas”, porque aqui a ruína é natureza (não foi absorvida, “fundiu-se” por vontade própria) e a natureza é um conceito, uma imagem cultural de um tempo e de uma sensibilidade – mas, para não haver feridas e para que, ainda que cultura, a paisagem seja paisagem de acordo com verdadeiras leis naturais (e romantismo e verdade tendem à sinonímia), ela deve despir-se de duas realidades, dois tempos: esta natureza aparta-se da idealização dos artistas franceses que marcaram a cena romana do século XVII (Poussin e Claude Lorrain) e do gosto burguês ora racional ora narrativo herdeiro de algum, de uma sua parte, do Iluminismo (Vernet, Hubert Robert).

A paisagem romântica mitifica um encontro ou a miragem de um encontro sem confronto, como se não existisse industrialização, entre natureza e cultura que cessa, como disse, nos momentos em que desponta a tomada de posse da ciência pela indústria: um drama – primeiro, a ciência, diz-nos Heidegger, é secretamente tecnicizada, depois sucumbe à necessidade, à economia e, claro, à indústria. O poder.

O que era da ordem da contemplação passa a suscitar medo (algo que estas fotografias não deixam de gerar, ou pelo menos uma perplexidade indisfarçável), medo e suspeição da razão, a qual no século XX será classificada como “instrumental” – medo, sonho, pesadelo e determinada sublimidade, que estas paisagens de Tito Mouraz, obtidas em pedreiras, não deixando de nos interpelar com o velho adágio de que o sonho (desta monumentalidade, por vezes desolada, outras abissal), o sonho da razão engendra monstros.

Já não está aqui apenas a matéria contemplativa romântica, não são exactamente paisagens o que estas fotografias revelam mas o seu ventre violado por uma força, humana sem humano, uma mistura de desolação, destruição e reconstrução (fruto da vontade da destruição). Revela-se toda a perversidade da técnica: a natureza é violada e desfigurada, mas a técnica reproduz e repõe todos os seus anteriores elementos contemplativos num teatro onde falso e verdadeiro se indistinguem – um simulacro ordenado pelo trabalho e a vontade económica.

Está aqui tudo o que existia antes numa paisagem “virgem”: escarpas, vegetação nas ravinas, estas estranhamente redesenhadas num inédto “mundo fechado”, e lagos que aqui são de sais de cobre mas iludem paraísos, não artificiais mas naturais.

Mas convém recordar que a fotografia não faz aqui, ou não se destina, a juízos de valor ou morais; a fotografia (como o filme), pelo seu aparato e equipamento, como diz Stanley Cavell, regista. Mas não regista passivamente: ela recompõe o mundo numa nova ordem natural.

Nos Hinos à Noite, fala-nos Novalis da magna importância de sabermos descer dos cumes e pináculos aos vales, de sabermos, por meios naturais (e poéticos também), adentramo-nos nesses planos horizontais a perder de vista pelos meios da natureza. Mas nestas fotografias apenas, ou quase só, existem linhas, rasgos e marcas verticais, e até a imensidão vertiginosa das escarpas é vertical. Compositivamente, estas verticais assinalam a vitória da razão e da técnica. E é com esta dimensão do mundo, razão e técnica, que a fotografia tem de lidar porque, ela própria, é uma técnica de reprodução de imagens. Contudo, é uma técnica conduzida pelo olhar, um olhar muito particular, o “olhar fotográfico”. Este opõe-se ao “olhar cartesiano”, passivo e afim do funcionamento da câmara escura (Descartes é um admirador de todas as invenções ópticas). Estas fotografias são pois fruto de um experimentado “olhar fotográfico”, que é aquilo que existe entre a técnica e a natureza. 

Carlos Vidal